O vagabundo
Apenas um vagabundo. Um qualquer que desfila pelas ruas das grandes cidades, sem ser notado. Talvez um dia você o encontre por aí pedindo um trocado para o café ou jogado no chão, mas algo no olhar daquele vagabundo mostrava que ele um dia tinha sido algo mais do que aquela forma grotesca, obrigada a viver de restos da vida de outras pessoas.
Ainda podia sentir o cheiro de seu medo espalhado pelo banco da praça ao acordar de mais um sonho ruim. Com as mãos no rosto se lembrava de seu passado, já muito distante, quando ainda tinha um nome e um número que o identificava como um cidadão comum.
Lembrou-se de seu relógio no pulso sempre marcando as batidas e os momentos em que poderia ter emoções, lembrou-se dos sorrisos asseados e amarelos, do brilho fantasmagórico das pessoas que viviam ao seu redor e da pergunta que não formulava, nem respondia.
Viu prédios serem apontados para o céu como grandes dedos acusando Deus pela miséria de suas almas, viu papéis cheios de números fluírem como água das torneiras de um país para a pia de outros.
Até se deter em um momento de seu sonho onde a lembrança e a fantasia se tocavam. Talvez fora naquele momento que percebeu que os prédios eram apenas areia, que seu coração fazia um som diferente do tic-tac de seu relógio, que sorrisos podres, mas verdadeiros valiam mais que etiquetas ou códigos de barra, que as coisas mais importantes da vida são incontáveis e que a única culpa de Deus era de ser misericordioso demais.
Em apenas alguns segundos lembrou da criança que correu para pegar uma bola e foi pega por um carro. O motorista cheio de ilusões e fugas da realidade não discerniu a cor vermelha da verde.
Ali no meio do asfalto cinza com uma criança ensangüentada em seus braços nunca se sentiu tão humano e frágil ao ter seus olhos fixados em uma faísca tênue dos pequenos olhos de seu único e verdadeiro amigo que rasgou o véu que cobria seus olhos e alma.
-Moço - disse o menino- por que dói tanto?  Decidiu não dormir nunca mais.
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário